ensaios.

Helena Kolody: Invenção e disciplina

Antonio Manoel dos Santos Silva

É do último livro de Helena Kolody a seguinte nota sobre os significados possíveis de um poema:

No poema
e nas nuvens,
cada qual descobre
o que deseja ver.

O texto, miúdo como quase todos de Poesia Mínima, lisonjeia o leitor, mas certamente deve constranger muito crítico literário. Poema sobre poesia, resume, por outro lado, alguns dos aspectos recorrentes em toda a obra que agora se publica: as propostas de poética fundadas na equivalência entre natureza e arte, o processo ideativo da ocultação, a simbologia da ascensionabilidade e do fugidio (quer dizer, do tempo). Tentemos seguir essas indicações concentradas em Significado.

  1. Traçados de um percurso ou esboços de poética

Em Paisagem Interior (1941), Helena Kolody vale-se de uma narrativa em versos, Elogio do poeta, para transmitir-nos a ideia antiga de que a poesia exprime emoções transfiguradas e contém estímulos participativos. Acompanha essa concepção a crença na singularidade do produto poético e na sua ressonância universal, o que subentende a defesa da excepcionalidade existencial dos poetas no domínio que lhes é próprio.

Sem dúvida alguma, um pressuposto se insinua aí. E de base religiosa: o de que o poeta se define no mundo como sombra de quem lhe deu a voz. Talvez por isso, em Canto místico, ouviremos a poetisa confessar, sem constrangimento, a insuficiência da palavra humana e a impotência pessoal diante do poema máximo, o Universo, e diante de seu poeta, Deus.

Parece-me que esse drama entre palavra e Verbo se encena desde 1941, com Paisagem Interior, até 1986, com Poesia Mínima. Parece-me também que as imagens referentes a essa compreensão humana da poesia vão-se compondo e recompondo, às vezes de modo tenso, com acréscimo ou subtração de elementos. Em Música Submersa, no poema de mesmo título, o texto lírico se define como “vibração emocional de ritmos vários”, a matéria da poesia vem referida como sendo o além das coisas (o cognoscível pela música); em Poetas mortos, desse mesmo livro de 1945, ressalta-se a predestinação dos poetas, cuja inquietude diante da perfeição ganha contornos patéticos: existência solitária e vozes como trinados de pássaros. Sonho e som, tal como se diz em O inefável, as palavras deixam sempre escapar a totalidade cósmica.

Com A sombra no rio (1951) o tema começa a sofrer outros impactos, embora conserve ainda o substrato conceitual anterior: por exemplo, participação emotiva, mesmo que seja o desdém do leitor, ou intensidade da experiência interior, mesmo que a forma não seja adequada. Pela primeira vez, acompanhando a sugestiva imagem do deserto, a poesia se apresenta como uma ideia objetiva, totalidade independente do autor (Hora vazia), ainda apegado a uma renitente confiança no poder oculto das palavras, o suficientemente flexíveis para atender a todas as solicitações humanas (Fraternal). Anos depois, em Vida breve (1964), a difícil harmonia vai ser proposta por Helena Kolody: arte poética como expressão autônoma e como denúncia em si. Leia-se o admirável Poesia (admirável na sua simplicidade de recursos paralelísticos e acumulativos é admirável na tensão interna entre as denominações do real e do simbólico, do humano e do floral). Aqui a concepção da arte e de sua função surge de um confronto estabelecido dentro dos limites do texto diminuto. A circunstância humana, fragmentária, refere-se pelo alinhamento automático das partes; em oposição, a flor, íntegra – vendo ou sendo vista? – dá a nota absurda e significativa de sua existência:

Soam pássaros apressados,
Surgem rostos pensativos,
Passam ombros encurvados
E passam olhos altivos

Sonha a rosa sobre o muro.

Participação e autonomia constituem propostas poéticas repetidas em Trilha  Sonora (1966). Neste livro Helena Kolody passa a tratar da arte como exercício para sugerir a beleza da existência beleza absoluta, presente no universo, mas, esquiva. A poetisa escreve então que lhe cabe apenas chegar à invenção de espaços verbais onde algumas lembranças desse todo deixam sinais quase imperceptíveis. Daí a diversificação das imagens sobre o fazer poético: ora trabalho escultórico, ora elaboração análoga à da natureza, ora magia; consequentemente mudança das imagens relativas ao poema: causa e estímulo emotivos, objeto inútil mas disponível, instrumento formador e educativo; daí ainda as configurações do poeta: aqui artífice, ali natureza mediadora, noutra parte mediação inconsciente e, noutra, menino. Poemas com essas conceituações subjacentes: Oficina, Pérola e Canto.

Saltemos por Era Espacial (1966) e ancoremos um pouco em Tempo (1970). Encontramos aí duas notas poemáticas que lembram as teorias croceanas: Criação e Captura. Ao lado destas que exprimem a conciliação dos contrários no ato criador, encontramos textos-sondas das oscilações profundas entre os polos da subjetividade e do mundo exterior e outros que exploram a negatividade da palavra humana quando confrontada com o “Verbo esquecido”: Crise, Palavras, Arte. Outra ideia, porém, vai-se firmando: a do poema como objeto inalcançável, o poema que seja a Poesia. Sombra no muro dá-nos essa idealização da poesia como pássaro em voo com o qual se identificaria o poema desejado; aponta-nos, porém, uma realização esquiva, um poema tornando “sombra de um voo”. Esse quase nada assume a forma de “um íris de palavras”, o poeta sendo apenas um cristal receptivo de uma parcela almejada de luz ou do sol. Outra vez, portanto, a precariedade da linguagem humana.

Essa precariedade sofrerá medrosa contestação em Coragem de cantar, de Infinito Presente (1980). Ali se confessa a possibilidade de superação da impotência verbal ou da vacuidade sentida: retomar a função primeira da linguagem, instrumento de comunicação ou meio de relação entre os homens. Trata-se de uma profissão de fé perdida no meio de poemas que exprimem o que desde então passou a ser um dos esteios do credo poético de Helena Kolody, um credo negativo em relação à palavra, à qual se recusa a propriedade de chegar ao essencial. Por uma dessas inversões contemporâneas tão definidoras de nossa condição, a poetisa elege o silêncio como a linguagem do Todo, embora use a linguagem para revelar essa escolha poétoca, o que acontece em Essencia, Elogio do silêncio, Poeta, e Depois. De outras perspectivas, esse deslocamento vai frisar outras relações: a do poeta com a palavra (Rodeio, Esquivas, Retrato); a dos equívocos interpretativos (Esquivas); a da perda dos significados e da memória poética (Fagulhas).

A negatividade, aliás tensa, continua no livro seguinte: Sempre palavra (1985). E apesar do título. Pois lendo Pássaros libertos chegamos ao possível fundo de um impasse: não somente a forma idealizada como real (Verdade ou Beleza ou Bem) não se alcança; também são independentes de nós as palavras que tentam dar conta dessa realidade. Em outra fórmula: o real (a verdade) fala pelo silêncio; outra ainda: silêncio, fala do real. E outra, que inverte Heidegger: “silêncio, instauração do ser”.

“Palavras são pássaros/Voaram! / Não nos pertencem mais.” Algo se perdeu, portanto, embora seja possível captar parte do seu sentido (Vestígios); algo se perde agora, embora uma esperança duvidosa projete no futuro uma possibilidade remota de recuperação (Oceano sonoro). Enfim, a poetisa retoma aquele desencanto que assolou muitos poetas de fins do século XIX e de todo este século: a atração negativa do branco e do silêncio, o desafio criador que essa atração implica, a consciência angustiada da finitude da palavra. De modo que, entre Pássaros feridos e Outra dimensão, se observa um traçado coerente: “Quem prenderá/no cárcere do verso/a miragem e o sonho, /o voo e o pensamento?”

Entretanto, esse traçado negativo cruza por algumas linhas sinuosas que praticamente forçam a quebra de sua continuidade. Em Bandeira, por exemplo, a poetisa fala de sua confiança no canto solidário. Em Antes qualifica o silêncio como a “maré” negativa.

Finalmente, em Poesia Mínima (1986) nos faz tomar contato com outra atitude, a apaziguada assimilação dos limites inerentes à linguagem. Código refere-se às leituras, aos modos de ler em que se cruzam a fala e a língua, o sentido e o significado. Linguagem remete-nos a um dos temas de gosto da autora, ou seja, a existência de uma plenitude natural que transcende as diversas manifestações. O esquema (já desenvolvido por Mário Faustino) identifica a vida com toda a linguagem que se manifesta na própria natureza. Onde?, melhor poema, capta outra face do fenômeno poético: a interioridade artística oposta a tudo quanto denota aparência e superfície. Nesse texto mínimo reformula-se, noutra chave, a concepção de poesia que estivera presente desde o primeiro livro e que aqui se reitera também em Inspiração, uma pedra-de-toque simbólica:

 

Pássaro arisco
pousou de leve…
Fugiu!

Na mesma linha se situa Cantar?, com alguma lembrança do espírito clássico em seu processo antropomorfizador da canção como companheira ou confidente. E por último, o excelente Presença:

O poeta ausentou-se.

Deixou seu rosto de palavras

inteiro

multiplicado

no espelho quebrado.

Também uma narrativa sobre a totalidade poética, tal como se dera no primeiro livro. Mas com um corte radical que desnuda a teoria da participação emotiva: nada de exaltação de um inspirado eleito, nada de uma universalidade sentimental em que outros se reconheçam, apenas a fragmentação singular. Aqui, no texto, podemos adivinhar na própria linguagem a instauração do drama sugerido: a dilaceração do poeta rima semanticamente com a quebra do espelho, e ambas com a dispersão da estrofe e do verso. Por trás, a trama oculta da presença ativa da poetisa que, ausente, se presentifica nas palavras.

  1. O ponto dentro do círculo e a vida obscura

Um processo constante na obra de Helena Kolody pode ser imaginado graficamente pelo círculo que encerra um ponto. Com múltiplas variações, essa figura nos permite abstrair procedimentos ideativos de diversa magnitude e importância na estrutura dos poemas, estendendo-se das figuras menores até as dominantes construtivas e temáticas. Para não cedermos a uma redução empobrecedora, basta pensarmos dinamicamente a relação entre o ponto e o círculo, vendo-os como concentração e expansão um do outro, respectivamente.

Vejamos duas expressões de “Sonhar” (Paisagem Interior): “É ver no lago um mar” e “Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo”. Nelas sentimos que o espaço metafórico encarna algumas abstrações: o poder encantatório da fantasia e a grandeza qualitativa do pequeno. Noutros poemas deste livro e dos outros, imagens com tal estruturação ideativa nos colocam diante dos seguintes motivos: a solidão, a presença de uma ordem providencial oculta, as tragédias quotidianas desconhecidas, a subjetividade como centro de irradiação e de concentração da pluralidade fenomênica, a identidade pessoal velada pela trama das palavras, a unilateralidade secreta da paixão, o sofrimento contido, a criação solitária, a obscuridade da vida autêntica. Em alguns títulos de livros esse esquema da ocultação transparece com clareza: Paisagem interior, Música submersa, A sombra no rio. E a contenção do vasto no mínimo não vibra por acaso em denominações como Infinito presente, Sempre palavra e Poesia mínima?

Dissemos que em alguns poemas o processo se torna um princípio gerador da construção semântica. Transcrevo dois deles, o primeiro de Música submersa e o segundo, de A sombra no rio:

Fio d’água

Não quero ser o grande rio caudaloso
Que figura nos mapas.

Quero ser o cristalino fio d’água
Que canta e murmura na mata silenciosa.

Alegria

Trêmula gota de orvalho
Presa na teia de aranha,
Rebrilhando como estrela.

Ambos os textos enunciam, de modo distinto, uma ética de renúncia ao prestígio público e, ao mesmo tempo, de valoração da autenticidade situada nos limites entre a ação desinteressada, o anonimato e a vida humilde. O primeiro o faz pela antítese entre o mapeável e o invisível, o artificial e o natural, cada qual a configurar a maior relevância do menos grandioso. O segundo texto, Alegria, também se fundamenta numa antítese (gota/estrela), antítese contida num símile, o qual, por sua vez, inclui um signo de sugestão: a presença da luz solar. Este Alegria, uma perfeição de trama verbal, com sua concentração de recursos sonoros e com a síntese significativa que opera com o mostrar, deixa claro como o processo lógico-criativo pode multiplicar-se no interior do texto. Trata-se de um verdadeiro pulsar que abole o tempo, ou melhor, que o supera pela negação.

Poemas como esses encontram-se também em Trilha Sonora, onde os motivos da vida obscura, da ação oculta e da latência dinâmica do mínimo articulam-se predominantemente com a atividade poética: centelha de inspiração, substância fugidia, surto secreto, sofrimento como causa eficiente da obra. Já em Tempo, encontramos outras variações, desde as que sugerem o trabalho corrosivo do medo (Pânico) ou da morte (Inexorável), antes insistentemente reiterados em poemas de Vida Breve e Era Espacial, até as que assinalam caminhos contrários a esses, como se pode ler em Esperança, Fontes, Arte, Origem, Ser, Poço, e Penumbra.

Marcando quase sempre a interioridade humana e a resistência desta à plena comunicabilidade, o esquema ideativo (processo, figuras e temas) comparece em Infinito Presente. Configuram esse lugar humano quase impenetrável os símbolos “ignorados subterrâneos” (Flashes) e “escuros labirintos” (Hermetismo), tanto quanto alegorias que ocupam pequenos poemas integralmente como Fagulhas, e Luz Interior, que transcrevo:

O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas

Luz interior chama a atenção para um procedimento significante – valorizar a força possível da palavra humana – muito enfatizado em Sempre palavra. Para a poetisa, neste livro, a palavra, o verbo, oculta o Logos, Verbo (Chama). Em outras dimensões, as dos correlatos objetivos e das figuras alegóricas, dirá Helena Kolody que o manifesto (poema, palavra, gesto) esconde fenômenos mais essenciais, de modo que aquele constitui simulacro destes, situados no domínio da profundidade individual onde realmente se dá a elaboração demorada e autêntica. Textos exemplificadores: Âmago, Trilha batida, e Gestação.

Esse ponto oculto passa a ser a totalidade pessoal em muitos toques poéticos de Poesia Mínima: Pingo de Chuva, Qual?, ?, Convergência, Figo da Índia, Insônia, e Sempre Viagem. Todos exprimem a irradiação do centro recôndito para toda a esfera individual, transformando o oculto – indevassável e inapreensível realidade – em lugar situado. E isto parece significar a resolução problemática de eleger a vida obscura como condição humana essencial; e neste sentido a poetisa lembra Cruz e Souza, com a diferença de que nela o exercício exigido pela escolha existencial também se identifica com a disciplina e a ascese da linguagem.

  1. Linha ascendente ou O Infinito anelo

Outro arabesco figurativo para ajudar a compreender a poesia de Helena Kolody talvez seja uma linha ascensional. Os conhecedores do modernismo hispano-americano fariam a aproximação inevitável com José-Martí e os leitores brasileiros, com o poeta Cruz e Souza e, mais ainda com Emiliano Perneta. A frase deste, “Oh! Ânsia de subir, hoje mesmo, a Montanha!”, serviria como inscrição emblemática para muito da poesia de Helena Kolody.

A simbologia da ascensionabilidade, relacional como a anterior, tem seu apoio na existência de uma linha traçada entre um ponto, em terra, e outro, urânico. Aquele, caracteriza o poeta (peregrino, viajante a partir, alpinista, ave em pouso), e este, o alvo almejado (cimos de montanha, alturas, regiões celestes, sol, Luz); a linha  da relação se instaura por meio de imagens de voos, escaladas, transportes, travessias ascendentes, olhares enlevados, elevações de mãos, etc. e até por meio de referências típicas, como as determinadas pelos verbos ascender, aspirar, alçar, crescer, transpor, ansiar, erguer, subir, voar. Tal simbologia reitera-se em todos os livros da poetisa, onde se articula com o tema do infinito anelo, com raízes no titanismo romântico e com indisfarçável parentesco com o Simbolismo.

Na obra de Helena Kolody, a ascensão espiritual, quer em expressões isoladas que como princípio dominante do texto, constitui aspecto de um quadro mais amplo que poderíamos definir, na falta de denominação melhor, como projeto de plenitude. Isto quer dizer que nela encontramos com frequência atitudes senão negadoras pelo menos reticentes diante das limitações existenciais. Desse modo, cruzando-se com a figuração do oculto e vinculando a busca da plenitude com a ironia, a ascensionabilidade rebate em referências que puxam o alvo das aspirações mais altas ou nobres para o terreno:

Idealista

Buscas ouro nativo entre a ganga da vida.

Que esperança infinita
No ilusório trabalho…
Para cada pepita,
Quanto cascalho!

O poema, de Música Submersa, que já antecipa os textos sintéticos das últimas obras, resume a antítese implicada no infinito anelo: o poeta, finito, não suporta o finito. Consequências previsíveis: textos-sugestões, auto-ironia, pesquisa das transcendências.

Essa insuportabilidade faz-nos compreender o bom número de poemas de inspiração religiosa, fáceis de serem identificados pelos próprios títulos (Gênesis, Prece, Canto Místico, Visão Apocalíptica, Caridade, Ação de Graças, De Profundis, Páscoa, Eucaristia, Ladainha, Ressureição, Sarça Ardente, e Benedicite) ou pela análise intertextual: O sentido secreto da vida, Paisagem Interior, As obras de misericórdia, Humildemente, Criança, Emblema, Queixa, O dom da alegria, Exílio, Secreto, Desprendimento, Ilhas, A Espera, Hoje, Egoísmo, Ressonância, Cosmo, Incógnita, Amor, Materialista, Tempo será, Ensinamento, Flama, Argila Iluminada, Suprema Solidão, Carência, Tríptico, Mergulho, e Dom. Imitações e paráfrases de orações, ou textos apoiados em trechos de livros sagrados, ou confissões mais personalizadas, muitos desses poemas delineiam a presença divina no mundo e apontam para o exercício humano das virtudes requisitadas por essa presença. É quando se constata uma tendência da autora: a de exprimir o sentimento de estigma, segundo uma tradição que vem de toda Bíblia (as provações humanas, principalmente as dos escolhidos de Deus), do Martirológio Romano e da Hagiografia cristã. Prolongando essa linha, Helena Kolody passa pelas várias gamas da dor: exaltação do trabalho em detrimento do prazer, a simples asseveração do estigma, o erotismo do sofrimento, a crispada recusa. Predomina, porém, a visão resignada que às vezes se transforma no projeto pessoal de um destino grandioso que existe renúncia e empenho: o sacrifício da própria existência para a salvação alheia. Esse empenho expiatório, encarnado em múltiplas variantes do redentor, contata ainda com o tema da participação generosa casualmente manifesta em Infinito Presente.

Também remonta à antiguidade certa simbologia do corpo humano: argila ou fardo. Num caso somos remetidos à ideia de ser o homem moldado por Deus, de ser a vida um dom do sopro do primeiro providencialmente renovado, e de ser o corpo apenas a matéria precária sujeita a uma determinação absoluta (pó que ao pó retorna), embora com vestígios de força divina: noutro caso, finitude pesada. Em ambos, infinito anelo. E como desdobramento, a visão da morte como passagem para a vida plena; coerentemente, ascensionabilidade (ascese, aperfeiçoamento, busca de absoluto) como justificação da vida mais digna.

      4. Os cones do tempo

Nem precisamos imaginar uma figura para chegar a quarta ma­triz temática, quem sabe a mais palpitante, da poesia de Helena Ko­lody: o tempo. A figura vem direta do texto da autora. É a ampulhe­ta, referida em Música Submersa, quando se associa à guerra e a seu cortejo de desgraças, e em Vida Breve, quando, desdobrando-se do titulo poemático, Tempo, sugere o percurso existencial:

Cai a areia da vida
Na ampulheta da morte.

Assim, a tempo, largo como co-existencialidade (sentimento da História e dos outros) quanto como temporalidade (sentimento desespe­rado ou tranquilo do próprio ser para a morte) dá a nota mais rele­vante da obra desta poetisa, acentuando ainda outros ternas e moti­vos: a poesia, o amor, o tenso contraste dos destinos pessoais e so­ciais (leia-se Aplauso), as águas claras (imagem de Kolody) da infância, a solidão, o tedio, a crise da identidade (leia-se o excelente e irônico Ausência de A sombra no rio, que ressoará em outros poe­mas de livros posteriores) e a reificação do homem moderno. Nem precisamos ficar aqui assinalando os poemas sobre a fugacidade da vida, sobre a mutabilidade das coisas e dos sentimentos, sobre a tem­poralidade substancial de cada um de nós, aspecto este que situa Helena Kolody na mesma linha poética do grande Antônio Machado. Nem precisamos também indicar os textos referentes à circunstancialidade histórica. O leitor, que também é tempo, será pego na veia, sem precisar de mediação do crítico.

Ressaltemos apenas que a expressão poética do tempo (história ou temporalidade) permitiu a afirmação de Helena Kolody como grande poetisa, sob qualquer ângulo que a consideremos, artífice da palavra, cada vez mais disciplinada e exigente, ou artista inspirada, cada vez mais densa. Grande poetisa ainda em algumas sutilezas criadoras que lembram Emily Dickson. De modo que, se algumas imperfeições puderem ser notadas (um ou outro texto moralizante, uma ou outra pieguice compassiva, uma ou outra queda de tensão artística), somente atestam elas o continuado aperfeiçoamento dessa autora quase desapercebida, em cuja obra o leitor, mesmo o mais rigoroso, terá oportunidade de sentir com muita frequência uma alta e vigorosa poesia.

Publicado originalmente como prefácio da antologia Viagem no Espelho, de 1988.